ESTAMIRA conta a história de uma mulher de 63 anos que sofre de distúrbios mentais e vive e trabalha há mais de 20 anos no Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, um local renegado pela sociedade, que recebe diariamente mais de oito mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Com um discurso eloqüente, filosófico e poético, a personagem central do documentário levanta de forma íntima questões de interesse global, como o destino do lixo produzido pelos habitantes de uma metrópole e os subterfúgios que a mente humana encontra para superar uma realidade insuportável de ser vivida.
"EU, ESTAMIRA, SOU A VISÃO DE CADA UM."
Esta é a definição que Estamira, uma mulher de 63 anos, se dá. Marcos Prado revelou ao mundo, através de um documentário, a senhora que, há 20 anos, divide espaço com o lixo despejado no Aterro Metropolitano de Gramacho, no Rio de Janeiro. Lúcida e ao mesmo tempo louca, diz que sua função é “revelar a verdade, somente a verdade”. Estamira é mãe de três filhos e habita, sozinha, um barraco de chão batido, do qual se orgulha, pois fruto de seu trabalho garimpando o lixo.
Lixo. Não é assim que gosta de se referir ao aterro, um lugar insólito e insalubre, onde crianças e adultos disputam restos de comida com urubus, cavalos e cachorros. “É um depósito dos restos; às vezes é só resto e às vezes vem também o descuido. Resto e descuido (...) quem economiza tem (...) ficar sem é muito ruim.”
Sua história de depressão e indignidade é capaz de incomodar. Aos 12 anos, foi estuprada por seu avô materno que a deixou em um prostíbulo onde conheceu um homem que a levou para casa. “Ele era mulherengo.” Casada pela segunda vez, com um italiano, protagonizou uma história de agressões e humilhação. “Esse também era mulherengo.” Uma briga travada por troca de ameaças pôs fim a mais um casamento. Chegou a morar na rua. Sua filha menor, adotada por outra família, a ajudava a esmolar. “É triste, muito triste.”
A lembrança do sofrimento que sua mãe carregara, é ferida na alma de Estamira. Carrega na memória, talvez a fase mais lúcida de sua vida: o clamor de sua mãe quando internada no Hospital Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro – “Estanira (era assim que se referia à sua filha Estamira), me tira daqui, Estanira!”
“Eu posso revelar quem é Deus.”
Em sua vontade de ser vista e ouvida, Estamira repete que veio ao mundo para “revelar a verdade”. Em seu discurso, através de metáforas, evidencia sua revolta e sua descrença em Deus. Ela o define de “poderoso ao contrário” e se julga mais sábia que Ele. “Que Deus é esse? Que Deus é esse que só fala de guerra e não sei o quê? Não é Ele que o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que Ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!”
O que é Deus na visão de Estamira? É aquele que, na existência, permite toda espécie de “trocadilhos”: o mal parecer bom, o feio parecer belo, o homem explorar o próprio homem, e assim por diante (não existe “homem inocente”, mas “esperto ao contrário”). “Sou ruim, mas não sou perversa.” Em várias passagens, Estamira se mostra revoltada com Deus e chega a dizer que seu ouvido não é privada diante da leitura que seu filho faz do Novo Testamento.
À morte ela dá sua própria definição: o “além dos além”, onde nenhum “sangüíneo pode ir lá”. “Sangüíneo”, para ela, é o homem em carne e osso, em formato, formato “homem par” e “homem ímpar”. Perturbada, diz que se comunica com “astros negativos”, espíritos “ruins” que tentam atordoá-la.
“O homem é o único condicional.”
O que se entende com a frase pronunciada inúmeras vezes por Estamira – “o homem é o único condicional” – é que o homem é o único responsável por tudo aquilo que lhe acontece. Não existe predestinação. Não existe Deus. Deus não acolhe o homem, não o ouve. “Piolho de terra suja que renegou os homens como o único condicional, mais revoltada eu fico.” A expressão “piolho de terra suja” significaria devoto?
“Sacrifício é uma coisa, agora, trabalhar é outra.”
Estamira demonstra fugir da realidade. Considera-se lúcida e vive em um mundo onde cria seus próprios conceitos, demonstrando certa sabedoria ao mesclá-los. Segundo ela, não vive para “fazer dinheiro”, não vive por isso. Porém, sem ter a clara noção de que muitas das vezes entra em contradição, diz não concordar com a vida.
Há 20 anos, Estamira sobrevive do que cata no aterro. Este é seu trabalho. Com chuva ou com sol, lá está ela a buscar sua subsistência, seu sustento para o corpo e para a alma. Tem sua atividade voltada para isso e não visa acumulação.
“Isso aqui é um disfarce de escravo. Escravo disfarçado de liberto, de libertado. Olha, a Izabel, ela soltou eles, né? E não deu emprego pros escravos; passam fome, comem qualquer coisa, igual aos animais e não têm educação.”
“Eu nunca tive aquilo que eu sou: sorte boa.”
A história de Estamira foi documentada pelo fotógrafo, e então diretor e produtor, Marcos Prado. Não se trata de um caso isolado. Estamira protagonizou no cinema uma história vivida por mais de centenas de brasileiros: o descaso. E aqui, não se refere apenas a quem viva no lixão, afinal, os direitos sociais elencados na Carta Magna são privilégios para poucos.
REFERÊNCIAS
PRADO, Marcos. Documentário Estamira. Ano: 2004.
Site oficial do documentário. www.estamira.com.br.
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