Artigo foi publicado no “Suplemento Literário” de 14 de abril de 1962
A inauguração do Instituto de Sociologia da Univeridade de Munique trouxe à tona o autor de ‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo’ e motivou a publicação, à época, do artigo de Carpeaux no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo.
Por Otto Maria Carpeaux
No Instituto de Sociologia da Universidade de Munique acaba de ser inaugurado o Arquivo Max Weber, em que, além de documentos e manuscritos, serão conservados os livros e estudos que se escreveram sobre o grande erudito: até agora, aproximadamente, 3.500.
Um orgão tão responsavel e tão insular como o
“Times Literary Supplement” chamou-o, há pouco, de “a maior figura da sociologia do seculo XX”.
Raymond Aron e Lorenzo Giusso dedicaram-lhe livros. O Fundo de Cultura Economica divulgou-lhe as obras no mundo de linguas ibericas. No Brasil, toda pessoa medianamente culta conhece o nome de Max Weber, pelo menos aqueles estudos que fundaram uma nova disciplina cientifica: estudando a influencia da ética protestante ou, mais exatamente, da ética calvinista sobre a formação da mentalidade capitalista, essa tese, embora muito discutida, é sua maior gloria e é o grande desmentido contra a idolatria da especialização: pois nunca teria nascido, se o economista e sociologo Weber, no ambiente estreito de uma cidadezinha universitaria alemã, não tivesse frequentado seus colegas da Faculdade de Teologia que ensinavam e estudavam a historia moderna da Igreja.
Mas tudo que Weber escreveu, continha germes e sugestões para outros estudos, de importancia muito grande, sempre maior do que aparentavam ser os assuntos. Seu primeiro trabalho, de 1891, sobre a historia da estrutura agraria do antigo Imperio Romano, esclareceu o papel historico do latifundio. Conquistou a catedra em Friburg com um estudo sobre a situação dos trabalhadores rurais na Alemanha oriental, então dominada pelos “junkers” prussianos. Combinou, em 1903, os dois assuntos, escrevendo um famoso verbete de enciclopedia sobre “Estrutura agraria na Antiguidade”, responsabilizando o latifundio pelo declinio e pela catastrofe da civilização antiga, terminando com uma sombria perspectiva para o futuro da Prussia latifundiaria de 1908. Também foi Weber o unico sociologo ocidental que se dignou de estudar a revolução russa de 1905: todo o mundo considerava-a então como a derrota de uma revolução socialista; mas o professor de Freiburg explicou-a como o fracasso de uma revolução burguesa, acreditando que esse fracasso causaria a transição direta da Russia, do feudalismo ao socialismo, sem fase burguesa.
Durante a primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918, estendeu Weber seus estudos sobre sociologia da religião ao mundo não-cristão. Escreveu sobre religião e sociologia do Islão, da China e do judaismo; mas, sobretudo, os famosos artigos sobre Amos, Hosea, Isaías, Jeremias, os profetas do judaismo antigo. Até então, esses profetas eram considerados como individualistas religiosos, que libertaram o judaismo do monopolio dos sacerdotes do Templo, preparando a transformação da religião nacional dos hebreus em religião nacional dos hebreus em religião universal. Mas Weber demonstrou que os profetas não pensavam na salvação individual das almas, e, sim, na salvação da nação ameaçada. Lutaram contra a burocracia do templo e contra a monarquia, já de prestigio decadente, para que a nação sobrevivesse às suas instituições obsoletas. - Foram estas as ultimas pedras para o grandioso monumento científico que Weber deixou. Depois da catastrofe de 1918, já professor em Munique, dedicou-se, episodicamente, a atividades politicas, contribuindo para o estabelecimento do parlamentarismo na Republica de Weimar. A morte prematura, em 1920, poupou-lhe amargas decepções.
Ainda não se aludiu, nestas linhas, à idéia determinante de Weber, quase um princípio de filosofia da história moderna: esta é caracterizada pela progressiva racionalização de todos os setores da vida. O Estado e o pensamento politico, a Administração e a Justiça, o Direito e as teorias e praticas economicas libertam-se, há 5 ou mesmo 6 seculos, cada vez mais, de mitologias, filosofemas, tabus de toda a especie, para reconhecer como supremo criterio só a eficiencia: é a racionalização da vida ocidental. O mesmo “trend” verifica-se na evolução das ciencias, pela exclusão gradual dos julgamentos de valor, oriundos de preconceitos tradicionais ou de fonte emocional. O testamento de Weber são as duas grandes conferencias muniquenses de 1920, “Politica e profissão” e “Ciencia como profissão”, nas quais proclamou a objetividade total da ciencia e, portanto, sua independencia da politica que, por difinição, nunca pôde ser objetiva. Os valores, sendo elementos subjetivos, não devem entrar no estudo cientifico de problemas nem nos seus resultados. Mas Weber sabe que os valores subjetivos aceitos pelo estudioso têm determinada função psicologica: são eles que inspiram ao pesquisador a escolha dos seus temas. Têm função seletiva. Essa tese autoriza a pergunta seguinte: - quais foram os valores subjetivos que determinaram, para Max Weber, a seleção dos seus temas de estudo? Em toda a imensa bibliografia sobre o sociologo, só duas vezes - por Christoph Steding (1832) e por Wolfgang Mommsen (1959) - foi levantada aquela pergunta. Responderam, partindo de pontos de vista muito diferentes, chegando no entanto ao mesmo resultado: foram valores da vida politica; daquela politica que Weber quis tão radicalmente excluir da ciencia objetiva.
Filho da burguesia capitalista e industrial da Renania, e dedicando-se, como especialista, ao estado de problemas economicos, seria de supor-se que estes monopolizassem a atenção de Weber. Mas não aconteceu assim. Na mocidade recusou os mais vantajosos convites para entrar na direção de grandes trustes; mais, dos estudos especificamente economicos.
A inedita relação que Weber conseguiu estabelecer entre os ensinamentos morais do protestantismo calvinista e o estilo de vida do capitalismo, manda pensar em inspiração religiosa, talvez subconsciente; pois Weber era livre-pensador, descrente, mas filho de gerações de burgueses calvinistas. Mas a analise das suas reações revela logo que a inspiração não era de natureza religiosa e, sim, politica.
A burguesia calvinista renana, que tinha construido a grande industria da Alemanha ocidental é pequena minoria num país meio luterano e meio catolico. Seu destino foi o caso extremo do destino da burguesia alemã do seculo XIX em geral: ficou com liberdade para fazer seus grandes negocios, mas também ficou excluida da direção politica do país, confiada no rei da Prussia, quase absoluto, aos seus aristocratas prussianos, aos seus oficiais aristocraticos, à sua burocracia de juristas. Não foi possível organizar uma oposição eficiente. Os catolicos alemães, no seculo XIX, fecharam-se num “ghetto”, não querendo participar de uma civilização predominantemente protestante. O luteranismo retirou-se para a pequena burguesia e para o Leste agrario, pois a etica luterana paternalista, é incompativel com a grande industria e com a comercialização; o estudo da diferença essencial entre essa etica e a do calvinismo é mesmo um dos meritos de Weber e do seu amigo Troeltsch. O proletariado? Como filho da grande burguesia industrial, Weber se preocupa mais com os sofrimentos dos trabalhadores rurais do que com as esperanças dos trabalhadores urbanos. Seu grande trabalho sobre a influencia da etica calvinista na mentalidade capitalista é vigoroso desmentido ao materialismo historico que explicara, ao contrario, pelo capitalismo as mudanças da mentalidade religiosa; o proprio Weber definiu esse seu trabalho como exemplo de “antimarxismo positivo”; naturalmente num outro nivel do que a antimarxismo barato e ignorante dos maccarthystas de hoje. Weber só quis demonstrar que “o espirito é mais poderoso que a natureza” (inclusive as forças inconscientes da economia). Nesse sentido, o trabalho de Weber sobre etica calvinista e mentalidade capitalista é o ato pelo qual a burguesia alemã conquistou a consciencia das suas origens e do seu destino. Mas essa classe, rica, culta e consciente, estava excluida do poder pelo imperador Guilherme II e seus aristocratas e burocratas e os latifundiarios da Alemanha oriental.
Eis os “valores seletivos” que inspiraram a Max Weber seus temas de estudo. Seus trabalhos sobre o operariado rural da Alemanha oriental atingem diretamente o inimigo agrario, o “junker” prussiano. Os estudos, aparentemente historicos, sobre o declinio da civilização antiga e a derrota do Imperio Romano pela força autodestruidora do latifundio predizem desastre semelhante ao Imperio da aristocracia latifundiaria prussiana; são de natureza complementar os artigos sobre o fracasso da revolução russa de 1905. Enfim, a guerra de 1914 e a direção incompetente dessa guerra pelas classes dominantes da Alemanha confirmaram as previsões do sociologo.
Fiel à sua convicção de que “a ciencia (social) tem a função de fazer compreender fatos incomodos”, Weber começou a fazer oposição ao Kaiser. A censura não conseguiu impedir essa oposição. Nenhum evasionismo obrigou o sociologo a entrincheirar-se atrás de estudos historicos, cheios de alusões à atualidade. De sua livre vontade escolheu, durante os anos de guerra, o estudo dos profetas do judaismo antigo. Esses profetas lutaram contra uma monarquia impotente e contra os sacerdotes profissionais, especie de burocracia do Templo; assim como Weber lutou contra o imperador Guilherme II e sua burocracia administrativa e militar. Os profetas, conforme Weber, não se preocupavam com a salvação das almas individuais, mas da nação ameaçada. O sociologo também se preocupou, naqueles anos, só com o futuro da nação alemã em face da derrota iminente. Ao monarquismo decadente opôs a perspectiva de lideres saidos do povo e legitimados pela sua vocação, o “charisma”; e à burocracia opôs a reivindicação do regime parlamentarista, o regime proprio da burguesia, o triunfo da racionalização enfim também na politica.
Pela derrota de 1918, a monarquia foi abolida. A Republica de Weimar iniciou a experiencia parlamentarista. Weber morreu logo depois, em 1920. Não viveu, para assistir ao espectaculo de forças irracionalistas se apoderarem das suas esperanças. A preocupação exclusiva pelo futuro da nação virou nacionalismo fanatico. A substituição da monarquia pela liderança, “charismatica” degenerou em culto ao “Fuehrer”. O fim eram as ruinas da Alemanha destruida e depois, sua reconstrução meramente economica.
Mas - “o espirito é mais poderoso que a natureza”. Depois de tudo, a lição de Weber sobre a objetividade da ciencia venceu. Em meio das ruinas materiais do nazismo e das ruinas espirituais do “milagre economico” fica em pé o monumento de Max Weber: sua Obra.
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